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23/04/2011

A MINHA PRÉ-COMPREENSÃO DO ATO DE JULGAR

NANCY ANDRIGHI
Ministra do Superior Tribunal de Justiça

(Texto elaborado em 24/12/1997)

Relata Calamandrei que certa vez defendia, como advogado, o
vendedor de um cavalo que, conforme a alegação do comprador, tinha o
hábito de morder. Venceu em primeira e segunda instância, pois os
julgadores não admitiram o vício redibitório, excluindo o fato de que o
animal fosse mordedor.

O vencido bateu às portas da Côrte de Cassação, que só julga
o Direito, sem competência para reabrir a discussão em torno de questões
de fato. Confiante, o genial advogado sequer usou da palavra. Mas
estranhou que o procurador geral, contrariamente à expectativa daquele,
houvesse se levantado para dizer que o recurso era fundamentadíssimo e
que deveria ser provido.

Finda a discussão, não resistiu ao ímpeto de dirigir-se ao
procurador, revelando sua surpresa, ao que lhe respondeu delicadamente
o defensor da Justiça:
- Caro advogado, contra cavalos mordedores toda severidade
é pouca.
Há muitos anos, caminhava eu a pé com meu filho pela mão,
quando, ao lado da calçada, o cavalo de uma carroça estacionada, mordeu
violentamente o braço do menino. Produziu-lhe uma profunda ferida, que
demandou mais de um mês de tratamento. Desde então, quando ouço
falar em cavalo mordedor, sou inexorável.

Este relato nos dá a idéia da importância da direção da
conduta de um juiz, não obstante o fato relatado se refira ao procurador geral,
pode ser aplicada ao julgador. No caso, não importa se o cavalo era ou não efetivamente mordedor, bastou que a parte tenha alegado o vício.

Na verdade o que se pretende com esta citação é a constatação de quanto
o aplicador da lei pode se escravizar a uma idéia.
A conduta, inevitavelmente, pode ser canalizada
inconscientemente. Há juízes que, sem explicação confessada são
irredutíveis em condenar sempre ou nunca condenar. São cativos de
sentimentos ou emoção levados a um alto grau de intensidade,
sobrepondo-se à lucidez e à razão, que reduzem sobremaneira o acervo
de independência necessário para produzir um julgamento isento.

É certo que no ato de sentenciar não há como fazer evadir
todo o sentido crítico que são prescritos pela concepção individualista. E,
considerando, no ato de aplicar a lei ao caso concreto pode o julgador
colocar, diante de lacunas que devem ser preenchidas por interpretação
pessoal, preconceitos e pré-compreensões sobre determinados assuntos,
necessário se faz investir todo o potencial de esforço para que a parcela
de fatores pessoais não venham nunca interferir e nem prevalecer no ato
de julgar.

Em discurso de posse no cargo de Juiz de Alçada Criminal do
Tribunal de Alçada de São Paulo, o Dr. Manuel Pedro Pimentel, ao transpor
a posição de advogado para juiz, manifestou-se com apurado senso de
conhecimento da nova postura que deveria assumir:
Somente o Juiz livre de preconceitos, livre de juízos
apriorísticos, livre de idéias estereotipadas, livre das injunções facciosas,
poderá encontrar a verdade, essa mesma verdade que é a única que nos
interessa, defronte do nosso tribunal a que devemos contas, o tribunal da
nossa consciência.

Evidentemente que a interferência da pré-compreensão no ato
de julgar se constitui em risco a que submetemos as partes em conflito.
Depende, necessariamente, de o juiz ser detentor de humildade, que é virtude chave, para que mantenha a consciência e obedeça o ensinamento
de não superestimar os próprios conhecimentos como elementos
relevantes e indispensáveis para o ato de julgar. A vaidade gera uma
confiança excessiva em si, o que redunda em crescimento exagerado do
sentido de autoridade e a desconsideração ao pensamento de outros
juristas. Com muita propriedade o Des. Edgard de Moura Bittencourt
afirmou:
Desconfiar de si é o dever do jurista; confiar no Direito, como
bem geral, é sua elevada missão. Coragem de afirmar a verdade, depois
de buscá-la com humildade perante suas persuasões vulneradas pelos
fatos e argumentos, - eis, no magistrado, a paradoxal simbiose da luta e a
renúncia.


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