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05/07/2011

Direito penal mínimo na web

Texto e foto: Marcela Rossetto

Alexandre Jean Daoun
Advogado Criminalista


A legislação penal brasileira atende 95% das demandas virtuais

 Sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI) e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP, o advogado criminalista e professor universitário Alexandre Jean Daoun defende o direito penal mínimo na internet e é contra a gana legislativa penal que ocorre na sociedade a cada grande trauma provocado por crimes bárbaros como ocorrido em abril na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro. "Para não se perder a credibilidade, é o direito penal mínimo. E no ambiente virtual, 95% das relações que se têm já estão disciplinadas na legislação penal." Daoun destaca que o direito penal é o último recurso e que só deve ser aplicado quando todos os demais forem insuficientes.
Nesta entrevista, entre outras questões relativas ao meio eletrônico, o advogado, coautor, entre outras obras, do livro "Direito & Internet", pela Quartier Latin, fala dos crimes virtuais mais comuns, da responsabilização de redes sociais e provedores de internet na popularização de ilícitos e da falta de educação digital. "As pessoas têm uma falsa sensação de anonimato e diminuem os freios pessoais quando estão na frente de um teclado e de um monitor. Elas escrevem mais do que diriam frente a frente, olho no olho", comenta.

Visão Jurídica - Quais são os crimes eletrônicos mais comuns no Brasil?
Alexandre Jean Daoun -
São várias as espécies. Tem a pornografia infantojuvenil, tem a questão da privacidade e tem também, em especial, as condutas que atingem empresas, como as fraudes praticadas por meios eletrônicos. Então, o leque é bem extenso. Mas o que tem de ser visto é a diferença entre os crimes praticados por meio eletrônico e os crimes praticados contra um sistema informático. É diferente.

VJ - E qual é a diferença?
AJD -
Se você pensar no crime de ameaça, que antigamente se fazia num bilhete, num papel escrito, esse mesmo crime hoje acontece por um e-mail ou por um scrap deixado num site de relacionamento. O crime é o mesmo. A tecnologia serviu só como uma ferramenta para praticar um crime que já está previsto em lei. Ameaça é ameaça, artigo 147 do Código Penal. O que mudou é como se pratica o crime. No caso, esse é um crime praticado por meio eletrônico. Diferente quando o alvo, o objetivo do criminoso é um sistema informatizado, como a supressão de dados de sistema informatizado. Aí é outro cenário.

VJ - Fraude bancária seria um exemplo?
AJD -
Fraude bancária, que hoje é comum, na verdade é crime praticado por meio eletrônico. Antigamente se falsificava um cheque, dados cadastrais eram falsificados. Hoje em dia isso acontece num clique de mouse. É o Cavalo de Troia, que é instalado no computador e a partir daí faz-se a captação de dados indevida. Os dados são captados indevidamente com o fim específico de subtrair o patrimônio de alguém. Crime de furto, crime de estelionato, também já previstos na legislação.

VJ - A legislação brasileira é suficiente para tratar de crimes eletrônicos?
AJD -
A primeira coisa que se tem de ter em mente é o seguinte: as pessoas falam que o Código Penal é muito antigo - é de 1940 - para essas relações. Mas isso não é verdade. Tudo o que tem no Código Penal brasileiro hoje é aplicável ao meio eletrônico, porque ele é só mais um meio. Então, o que nós temos de legislação penal no Brasil é suficiente para tutelar as novas condutas. Porque as condutas são as mesmas, só que num formato diferente.

VJ - A polícia está preparada para investigar crime eletrônico? As delegacias especializadas são necessárias?
AJD -
Tudo vai da política criminal adotada. É possível investigar crimes praticados por meios eletrônicos num distrito comum desde que você garanta estrutura ao distrito comum. Na verdade, o que ocorre é que em alguns estados falta estrutura nos distritos até para os crimes do dia a dia. Há uma deficiência estatal nesse sentido, sem dúvida alguma. E aí, como solução "mágica", querem criar delegacias especializadas, mas isso não adianta. Tecnologia se combate com tecnologia, mas depende sempre da estrutura do Estado. Sempre.

VJ - É preciso algum tipo de capacitação para os policiais?
AJD -
Precisa um pouco mais. Porque o problema todo passa pelo ser humano. A necessidade de policiais preparados para a investigação de crimes específicos que envolvam tecnologia é a mesma de uma empresa que investe em equipamentos de última tecnologia. Não basta comprar equipamentos se não houver investimento na capacitação de pessoal. Você compra um monte de firewalls, de proteção para o sistema e não dá treinamento para a secretária, que deixa a janela aberta na tela e o sistema fica todo vulnerável. Ou seja, o investimento não é só em equipamento. O investimento principal, seja para a investigação pelo Estado, seja em empresas, deve ser em pessoas.

VJ - E o Judiciário, está acompanhando a evolução tecnológica, a realidade dos crimes eletrônicos, nas decisões monocráticas e na jurisprudência dos tribunais?
AJD -
Sim. Cada vez mais os tribunais vêm reconhecendo exatamente que o que mudou foi a forma, mas o crime já está disciplinado na lei penal. Portanto dá para aplicar a lei penal e vamos aplicar a lei penal. Isso em primeira e segunda instâncias, e Brasília também vem confirmando este entendimento.

VJ - Quando a sociedade passa por traumas gerados por crimes bárbaros, como o da escola em Realengo, no Rio de Janeiro, cujo criminoso manteve página em rede social praticamente "avisando" sobre o que ia fazer, surgem vozes querendo novas leis envolvendo a internet. Nesse caso, a discussão gira em torno de uma lei de bullying e cyberbullying. Precisamos de novas leis penais para esses crimes?
AJD -
Os crimes de constrangimento e de ameaça já estão previstos no nosso ordenamento e daria para disciplinar questões tão atuais. Acho até que é necessário um ajuste na lei penal para o bullying especificamente. Mas um ajuste, não a criação de uma lei específica para isso. Temo justamente por isso: aproveitar-se de um caso polêmico pontual, no embalo de um impacto social, para criar uma lei que, às vezes, num curtíssimo espaço de tempo, se torna absolutamente inócua. É muito perigoso quando se cria uma lei penal e não se utiliza dela, porque isso cria uma sensação de insegurança. O direito penal só deve entrar em cena para disciplinar quando outros meios não foram suficientemente produtivos para conter aquilo. A partir do momento que você coloca o direito penal na linha de frente para combater uma determinada situação e ele não é eficaz, não tem nada que segure aquele tipo de conduta.

VJ - As redes sociais aumentaram a incidência de crimes eletrônicos?
AJD -
As pessoas têm uma falsa sensação de anonimato e diminuem os freios pessoais quando estão na frente de um teclado e de um monitor. Elas escrevem mais do que diriam frente a frente, olho no olho. Então, isso, naturalmente, na proporção, acaba gerando mais infrações. Se for parar para pensar, também aumentaram os elogios e as relações de amizade nessas redes sociais. Tem o lado bom e o lado ruim. O problema é o mau uso, não a tecnologia. Quem tem de ser absolvido nessa história toda é a tecnologia porque o problema todo é o fator humano. Aumentou, é verdade, mas, proporcionalmente, vemos muito mais benesses que malefícios na tecnologia.

VJ - As pessoas ainda não entendem bem como agir na internet? Ainda perdura a ideia de terra sem lei, como a profusão de downloads ilegais, por exemplo?
AJD -
Exato. As pessoas têm essa falsa sensação e vou te dar um exemplo: investigar um crime cometido por meio eletrônico, de certa forma, é muito mais fácil. Realizando uma pequena perícia no equipamento, no IP de onde partiu a mensagem, tem-se praticamente a autoria certa. É diferente de um crime que acontece na rua. É mais difícil investigar um crime de rua que um crime eletrônico. As pessoas talvez não tenham se dado conta disso e acabam sofrendo processo por causa dessa falsa ideia de que nada vai acontecer.

VJ - Tem de investir em educação digital?
AJD -
Exatamente. E é um trabalho preventivo, como também acontece nos crimes comuns. Segurança pública, por exemplo. Tem de reprimir, é verdade, mas o trabalho de prevenção é muito mais barato, é muito mais eficiente. Para os crimes praticados por meio eletrônico também, isso passa obrigatoriamente por uma preparação para o comportamento das pessoas, educação virtual.

VJ - Existe uma proposta de criar o domínio "xxx" para conteúdo adulto. Isso ajudaria a inibir e afastar jovens e crianças de sites impróprios?
AJD -
É mais uma barreira que se cria, mas não é a solução. Não existe uma solução mágica para a questão, por exemplo, da pornografia infantojuvenil. Mas é, sem dúvida nenhuma, um obstáculo a ser ultrapassado pelos criminosos e não há nada de errado nisso e nenhum ponto de inconstitucionalidade até porque se está tutelando bens que hoje a sociedade mais preza. O grande vilão dos crimes cometidos por meio eletrônico, o campeão em estatística, é a pornografia infantojuvenil. E é importante lembrar que ele também está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 241. Ele é suficiente e estabelece uma sanção dura, inclusive em meio eletrônico. Está expresso na lei. Esse artigo do ECA já foi alterado três vezes em dez anos, ampliando a conduta. Antes era só "publicar ou armazenar". Hoje em dia é "publicar, armazenar, guardar em casa etc." O tipo penal foi ficando mais abrangente e a pena foi sendo ampliada. Ou seja, você percebe o valor que a sociedade deu para este tipo de conduta. Há repulsa em relação a isso, porque o advento da tecnologia da internet facilitou muito a prática desse crime.

VJ - Qual a responsabilidade dos provedores e sites de relacionamento nos crimes eletrônicos?
AJD -
Pensando no conceito de responsabilidade, há vários enfoques. Tem o enfoque civil, o enfoque das relações de consumo, mas para o enfoque penal, de responsabilização penal, ou seja, dizer que o provedor também praticou o crime, foi coautor, foi partícipe é outro conceito e muito particular e muito diferente dos outros. Não tem como punir o provedor criminalmente se ele não tinha conhecimento daquilo.

VJ - Quando ocorre a responsabilização penal do provedor ou site de relacionamento?
AJD -
Tendo conhecimento de que a página de um de seus clientes tem conteúdo impróprio ou de que o cliente transmite mensagem nesse sentido e não toma providência de excluir ou notificar, aí sim ele pode ser responsabilizado - inclusive penalmente. Agora, sem a ciência disso, sem o conhecimento, penalmente não dá para punir. Talvez como ilícito civil, sim.

VJ - O monitoramento de todas as páginas dos usuários configuraria invasão de privacidade?
AJD -
Pois é, esse excesso atingiria outro bem jurídico que é a privacidade. Poder-se-ia chegar a essa conclusão. A situação fica um pouco complicada. Se fizer muito, cria-se uma vulnerabilidade e pode-se ser processado por isso. Se não fizer nada, também.

VJ - Uma questão sempre presente, quando se fala em internet e comunidades em redes sociais, é o limite da liberdade de expressão versus apologia a crime. Quando começa um e termina o outro?
AJD -
É uma linha muito difícil de visualizar. Essa divisão clara não existe. Depende de interpretação, as frases que são ditas ou tecladas devem ser analisadas no contexto. Nem tudo o que você coloca como expressão de opinião pode ser entendido como crime de preconceito, conceito formado, por exemplo. A premissa é a liberdade de expressão. Então, especialmente na questão da tecnologia, se se extrai uma parte do vídeo, extrai-se um trecho de um diálogo num site de relacionamento sem analisar o contexto, tem-se uma impressão. Mas inserido no contexto, aquilo pode não significar absolutamente nada - nem ilícito civil, nem ilícito penal. Então, a facilidade da tecnologia dá margem a essas distorções.

VJ - Às vezes a diferença está no modo de expressar ou na escolha de uma palavra...
AJD -
Sim, uma mesma frase dita a duas pessoas diferentes pode gerar reações e interpretações diferentes. Por outro lado, tenho receio de que o excesso de cautela iniba a liberdade de expressão. Hoje em dia as pessoas ficam com receio até das piadas, com medo de ser mal-interpretadas - e isso é um engessamento que não faz o menor sentido.

VJ - É a potencialização do politicamente correto?
AJD -
Exatamente, e na internet tem muito disso. De um lado tem uma liberdade muito grande no meio virtual, mas de outro tem um patrulhamento tão grande quanto ou até mesmo maior.

VJ - É possível traçar o perfil do criminoso virtual?
AJD -
Não existe um perfil específico. Vários fatores influenciam. Há os agentes criminosos virtuais que praticam fraudes em empresas utilizando ferramentas eletrônicas, porque muitas vezes querem mostrar competência, querem mostrar capacidade, então acabam exorbitando nesse sentido até para ser contratado pela façanha praticada; há aqueles que praticam crimes no âmbito pessoal, ou seja, que extrapolam a sua liberdade de expressão; e por aí vai. Mas destacaria esses dois, entre o âmbito pessoal e o profissional, especialmente no profissional, ligado à capacidade de mostrar as façanhas.

VJ - Qual o melhor caminho para o direito penal no meio eletrônico?
AJD -
A tônica principal é a seguinte: a desnecessidade de legislação penal nova, o direito penal para as relações virtuais é um direito penal mínimo. É isso que se recomenda. Minimamente usar o direito penal, sendo que se devem usar outros ramos do Direito para coibir as situações praticadas no ambiente eletrônico. O direito penal deve ser guardado e resguardado para situações absolutamente extremas. Daí a crítica a essa compulsividade de legislar, de criar lei penal para isso, para aquilo, porque o direito penal é o instrumento mais drástico que se tem. Pagar uma indenização é uma coisa, perder a liberdade é outra. Então, para não se perder a credibilidade, é o direito penal mínimo. E no ambiente virtual, 95% das relações que se têm já estão disciplinadas na legislação penal. Não há por que criar e falar tanto em legislação penal específica.

VJ - Então, existem 5% de lacuna legal?
AJD -
Para punir alguém, exige-se que a conduta esteja especificamente prevista em lei. Não se admite nem a analogia nem a comparação. Então, se não está escrito na lei penal que aquilo não pode ser feito ou que se alguém fizer aquilo tem uma aplicação de pena X, Y, Z, não se pode punir essa pessoa. Pode reparar dano, pode pagar indenização, mas para fins penais isso não pode acontecer. Então, existe, sem dúvida nenhuma, nesse ponto, uma pequena lacuna, porque sistemas informatizados não estão previstos no nosso ordenamento penal. Por exemplo, a questão de dados bancários. Se não for para o fim de subtrair valores - isso já está tutelado -, mas só os dados em si, não se tem o ilícito penal para disciplinar. Talvez no caso de uma espionagem. Resumindo, para quase tudo você tem lei penal aplicável. É falsa e perigosa essa ideia de "mundo sem lei". Tem lei, sim, e tem lei penal. Isso é que é importante. Se a estrutura do Estado não está preparada, é outra história.

Edição 62

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