André Karam Trindade
Doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Nesta semana, a ConJur divulgou o estudo realizado pela FGV-Rio e Universidade Federal Fluminense a respeito dos concursos públicos federais (leia aqui). A pesquisa verificou, empiricamente, as falhas do modelo atual e concluiu: “O concurso no Brasil tem cada vez mais se tornado um fim em si mesmo. Seleciona as pessoas que têm mais aptidão para fazer prova de concurso. Temos uma ineficiência de fiscalização de competências reais”. O relatório final — que também propõe uma série de medidas e alternativas — deve ser publicado no próximo mês. O problema, todavia, não é novo. Pior. Ele é conhecido de todos. Há décadas vem sendo fortemente combatido por diversos juristas preocupados com o modo como (não) se ensina Direito no Brasil. As críticas, entretanto, parecem não surtir qualquer efeito... A crise se mostra cada vez mais aguda.
Na última coluna Senso Incomum (leia aqui), Lenio Streck detona mais uma vez a indústria dos concursos jurídicos. Diz que as provas se transformaram em uma espécie de quiz show. Mais parecem um conjunto de pegadinhas. O conhecimento auferido é estéril. E o que é ainda pior: é um círculo vicioso e não virtuoso. Os concursos repetem o que se diz nos cursinhos, um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas nos cursos de preparação, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões que são feitas por aqueles que são responsáveis pela elaboração das provas.
Algumas questões — sejam elas objetivas ou dissertativas — nos levam a pensar que tudo não se passa de uma gincana, uma brincadeira ou, ainda, um jogo (de azar). Parece sacanagem, mas não é!
A desaposentação segundo Kelsen e Siches (?)
Para ilustrar o tamanho do problema, volto a tratar das questões referentes ao eixo de formação humanística, exigidas desde o advento da Resolução nº 75 do Conselho Nacional de Justiça.
Vejamos o que perguntava a nona questão da 2ª Prova Escrita aplicada, recentemente, no XXIII Concurso Público de Provas e Títulos para a Magistratura do Trabalho da 9ª Região:
“A partir das formulações abaixo:
§1°) Responda de modo conciso e adequado as seguintes indagações utilizando o método da lógica do razoável de Recaséns Siches de um lado; e do positivismo de Kelsen de outro:
a) Com base na legislação brasileira é admissível a desaposentação no regime geral de previdência social? O aposentado, admitindo-se possível a desaposentadoria, deve renunciar ao benefício por ele titularizado, restituindo os valores anteriormente recebidos para possibilitar o cômputo do tempo de contribuição precedente à primeira aposentadoria?
b) O empresário Epaminondas, brasileiro e casado com separação de bens, tem por atividade um pensionato que aluga desde antes de se casar. No mesmo local (pensionato), mora com sua esposa Lírica e seu filho Artêmio, de cinco anos. Considerando o disposto no art. 978 do Código Civil (O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real), Epaminondas pode alienar ou gravar de ônus real o imóvel onde se situa o pensionato sem a vênia conjugal?”
Confesso, sinceramente, que não entendi. O que espera(va) o examinador com a formulação de uma questão deste naipe? Qual seria a relevância dos “métodos” de Kelsen e Siches para responder os problemas postos? Seria o positivismo normativista o bandido, e a lógica do razoável a mocinha? Tudo indica que sim. É impossível, entretanto, imaginar o gabarito. Lamento pelos candidatos.
Explico.
A primeira parte da questão diz respeito à desaposentação. Trata-se, portanto, da possibilidade de se renunciar à aposentadoria com o propósito de obter benefício mais vantajoso mediante a reutilização do tempo de contribuição. Tal instituto não encontra amparo no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Entretanto, a jurisprudência do STJ sinalizava no sentido de sua possibilidade. O mesmo não ocorre, contudo, no que se refere à restituição dos valores recebidos pelo segurado. Todavia, a questão chegou recentemente ao STF, onde já foi reconhecida a repercussão geral.
A segunda parte da questão aborda a desnecessidade de outorga uxória para a alienação do imóvel pertencente a um dos cônjuges cujo regime de casamento é o da separação de bens. Conforme o art. 978 do Código Civil, o empresário poderia alienar o imóvel sem a autorização de sua esposa caso este integrasse o patrimônio da empresa, independentemente do regime de bens. No entanto, o enunciado tem indicativos de que se trata de bem de família, uma vez que nele vivem o empresário, sua esposa e filho. Tal circunstância exigiria a outorga uxória, de acordo com a Lei 8.009/90. Outra hipótese seria se estivéssemos diante do bem de família instituído mediante escritura pública, conforme autoriza o Código Civil. Todavia, o enunciado não oferece mais informações. Na verdade, não se sabe nem mesmo se o imóvel integra o patrimônio da empresa ou do empresário. A resposta, como se vê, implica uma manancial de suposições...
As observações aqui resumidamente esboçadas certamente não respondem a questão. Isso porque, até o momento, não se falou sobre os métodos “positivista normativista” e da “lógica do razoável”. Ambos os problemas apresentados referem-se à interpretação e aplicação do direito.
Para Hans Kelsen (1881-1973), o autor da famosa Teoria pura do direito, a aplicação do direito é marcada pela indeterminação das normas. O julgador dispõe de uma margem, ora maior ora menor, para sua livre apreciação. Tanto é assim que, no famoso capítulo oitavo de sua obra, a questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do direito a aplicar, a correta não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte — uma questão de conhecimento dirigido ao direito positivo, não é um problema de teoria do direito, mas um problema de política do direito.
Agregue-se, por oportuno, que Kelsen criticou as teses que se inspiraram na doutrina de Montesquieu e defendeu a atividade interpretativa do juiz como um ato complexo em que se conjugam conhecimento e vontade, criação e aplicação da lei, isto é, pensou a norma como um marco aberto de possibilidades: o juiz conhece a multiplicidade de opções que ela lhe oferece para, então, dar conteúdo à sua sentença e cria uma solução ad hoc, na medida em que escolhe uma de tais opções.
De outro lado, Luis Recaséns Siches (1903-1977) entende que, no reino da vida humana, não se pode aplicar a lógica do racional (matemática), mas outra bem diversa: a lógica do razoável. Esta não seria mais um método de interpretação a ser somado aos demais. Para ele, a lógica do razoável seria o único método de interpretação jurídica, eis que superaria uma multiplicidade de procedimentos hermenêuticos equivocados e confusos.
Na verdade, a lógica do razoável seria a única capaz de levar em conta critérios valorativos — axiológicos — e que, portanto, se mostraria válida quando se deve compreender e interpretar, de maneira justa, o conteúdo dos dispositivos jurídicos. A fim de ilustrar sua teoria, Recaséns Siches invoca a disputa judicial entre Ida White e os herdeiros de Wesley Moore.
Seu exemplo mais conhecido — e citado por diversos autores — é o seguinte: No começo do século XX, numa estação de trens na Polônia, à época submetida ao império russo, havia um letreiro que transcrevia um artigo do regulamento cujo texto previa: “É proibido passear na plataforma com cachorros”. Ocorre que, certa vez, um campesino tentou entrar na plataforma acompanhado de um urso. Todavia, o vigia da estação lhe impediu o acesso. O campesino protestou alegando que o dispositivo proibia apenas o passeio com cachorros, não se aplicando a outros animais. O caso foi levado ao tribunal. E a única solução justa seria a aplicação — intuitiva — da lógica do razoável.
A pergunta que fica é: como responder às questões a partir de tais referenciais teóricos?
Honestamente, penso que qualquer tentativa nesse sentido não passa de pura especulação. Mero exercício de imaginação do candidato. Uma hipótese absolutamente esdrúxula, mas altamente provável, seria vincular o positivismo ao entendimento “formalista”, de um lado; e a lógica do razoável a um entendimento “progressista”, de outro.
Na verdade, eu apostaria que o gabarito segue por esta linha... Sob a perspectiva do “método” positivista, a desaposentação não seria admitida porque carece de previsão legal, enquanto a outorga uxória seria dispensada porque o imóvel seria patrimônio da empresa. Sob a perspectiva da lógica do razoável, por sua vez, ocorreria o inverso: a desaposentação seria admitida, ainda que não prevista no sistema, assim como seria dispensada a restituição dos valores recebidos, e a outorga uxória seria imprescindível, visto que o bem de família deve ser sempre resguardado.
Se concordo com tais afirmações? De maneira nenhuma. A começar porque o positivismo legalista (século XIX) não deve ser confundido com o positivismo normativista (século XX). De outra banda, penso que devemos estar sempre atentos às posturas axiologistas, visto que os valores — sejam eles intuídos, sopesados ou ponderados — representam um álibi teórico que, ao fim e ao cabo, mascara a vontade do intérprete. E este é precisamente o ponto de contato entre as teorias positivistas e aquelas axiologistas.
Em suma: Kelsen e Recaséns Siches são dois autores importantíssimos que foram incluídos no programa anexo à Resolução nº 75 do Conselho Nacional de Justiça. Desde então, existe um louvável esforço para que se formulem questões que envolvam conteúdos relativos à teoria e filosofia do direito.
O grande problema é o modo como isto vem sendo feito. De novo, tudo indica que a única coisa realmente importante é que o candidato esteja treinado para responder questões de concurso. No caso em tela, os examinadores tentaram “aplicar” os “métodos” dos autores a situações práticas que não guardam a mínima relação com os problemas teóricos por eles enfrentados. O risco disso é sabido de todos: a banalização da teoria e da filosofia do direto, que são consideradas matérias cada vez mais prescindíveis.
Numa palavra final: o que os examinadores esqueceram de perguntar foi quais os dispositivos legais-constitucionais que o juiz — ou melhor, ou o candidato a juiz — deveria invocar? Ou seja: os arguidores queriam saber o secundário em lugar do principal... Tudo para misturar o imisturável, como se faz nas gincanas.
A função (social) dos concursos
Todos nós sabemos que a indústria dos concursos públicos obedece à lógica do mercado. E esta é, a meu ver, uma batalha perdida. Isto não significa, contudo, que ela não possa ser aproveitada. Faço um exemplo (lúdico, reconheço).
Imaginemos por um breve instante que os concursos assumissem, efetivamente, o compromisso de selecionar os candidatos mais habilitados para o exercício de determinada carreira jurídica, levando em conta a capacidade de reflexão (teórica) e resolução de casos (práticos) em conformidade com o paradigma do Estado Constitucional.
A tese é simples e parte de uma crítica contundente de Lenio Streck: “enquanto os livros mais vendidos e mais utilizados nas salas de aula forem os manuais simplificadores (para dizer o menos) e compêndios, não se pode esperar melhoras nos concursos públicos. A ligação é umbilical (na verdade, a crise do ensino e dos concursos são gêmeos xifópagos, para usar um personagem sempre presente nas salas de aula e nos concursos)”.
Se, hoje, o círculo é vicioso, também é certo que a profissionalização dos concursos jurídicos e, igualmente, dos cursinhos de preparação agravaram o problema na medida em que, com eles, se reforçou o movimento de simplificação do direito, que se limita à reprodução de um “saber” estandardizado, asséptico, esterilizado, no qual não há espaço para nenhuma reflexão.
Mas pensemos apenas por um instante no movimento inverso. E se os concursos sofressem uma revolução copernicana, abandonassem a cultura manualesca que plastifica o direito e adotassem como referencial uma dogmática jurídica crítica, transformadora e emancipadora?
Uma virada deste porte — alavancada pela indústria dos concursos e todo seu aparato — seria capaz de produzir mudanças tanto no ensino jurídico, uma vez que as faculdades e cursinhos de preparação teriam de se readaptar às novas diretrizes, como também na própria realização do direito, em face da formação de candidatos mais qualificados e da possibilidade de seleção dos profissionais mais habilitados.
Assim, os concursos poderiam servir não apenas para selecionar os candidatos mais competentes e habilitados para o exercício de determinadas funções (juiz, promotor, defensor, delegado, procurador etc.), mas também contribuiriam para auxiliar, de um modo geral, na formação dos juristas, exigindo conteúdos capazes de qualificar todos aqueles que se dedicam aos certames.
O que ocorre hoje? Após anos de dedicação exclusiva, muitos jovens desistem de estudar e, ao final, concluem ter perdido anos de suas vidas, uma vez que o conhecimento aprendido se mostra inútil. O mesmo fenômeno se verifica, paradoxalmente, quando os candidatos são aprovados nos certames. Depois das solenidades de posse e das comemorações, a pergunta que surge é sempre a mesma: “E agora? Não sei nada... sou uma fraude”. Com o tempo, o pânico inicial se dissipa e todos conseguem desempenhar suas funções. Uns se saem melhores, outros piores, como tudo na vida.
E como poderia ser? Os estudantes e profissionais que investissem seu tempo na preparação para os concursos se tornariam, mesmo quando reprovados, profissionais mais capacitados para exercer qualquer das profissões jurídicas.
Moral da história: se, de um lado, o ensino jurídico — refiro-me à péssima qualidade das faculdades, de um modo geral — desce a ladeira, piorando a cada dia que passa; de outro, os concursos públicos — e, aqui, inclui-se o exame da ordem — poderiam deixar de contribuir para este triste fenômeno e, além disso, forçar a elevação do nível do ensino e, consequentemente, da própria realização do direito.
Revista CONJUR