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21/06/2011

Teologia da discriminação - para refletir

Procurador pede apuração sobre terceirização na PF
(foto no site 'nacaoruralista')
Eduardo Varanda Araruna
Procurador-Chefe do Trabalho na Paraíba



"A medida do amor é amar sem medida."
Santo Agostinho


Cerca de 50 mil pessoas se reuniram em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, para protestar contra o PLC 122, projeto de lei que criminaliza qualquer ação, opinião ou crítica que venha a ser interpretada como discriminação ou preconceito quanto à homossexualidade. Essa manifestação, organizada pelo feroz pastor Silas Malafaia culminou com a entrega ao presidente do Senado, José Sarney, de mais de 1 milhão de assinaturas de repúdio ao projeto.

Repito: 1 milhão de "cristãos" querem ter assegurado o direito subjetivo potestativo de injuriar o próximo em face à sua condição sexual.

Na verdade, evangélicos e católicos argumentam estarem “unidos nessa luta a favor da família e da liberdade de expressão”. Ao final, questionam , dentre tantos outros pontos críticos, que, se um pastor, um padre ou um diretor de escola, por questões de princípios éticos, morais e institucionais, quiser obstar manifestações de homoafetividade no pátio da igreja ou da escola, poderá ser processado e ir para a cadeia. Justificam, com mil teses, que tal impedimento feriria de morte a liberdade religiosa assegurada pela Constituição da República.

Não sou teólogo nem o quero ser. Acontece que os religiosos resolveram se imiscuir indevidamente na Ciência do Direito, alegando inconstitucionalidade de um projeto de Lei que tem como escopo resguardar os princípios fundamentais da República (não-discriminação e a dignidade do ser humano). Açodado, cometerei o mesmo erro de “Suas Santidades”, esses sacerdotes, e vou adentrar atrevidamente na avaliação da Bíblia em face do pecado letal da sodomia, o qual é proclamado, algures e alhures, por aqueles seres coléricos, arrogantes, soberbos e onipotentes como uma abominação aos olhos de Deus.

Assim, esta crônica é para aqueles “sumos pontífices” que se arvoram na condição de intérpretes divinos, semi-deuses, instrumentos únicos da moral, da família e dos bons costumes.

Não se pode negar que, nas traduções hodiernas da Bíblia, seja na versão católica ou naquelas em moda nas instituições protestantes, há diversos trechos nas Sagradas Escrituras que parecem abominar a relação sexual entre homens. Em Gênesis, argumenta-se que está claro que Deus criou a mulher para o homem, e o primeiro mandamento divino foi “crescei e multiplicai!”. No mesmo livro, registra-se que o Todo-Poderoso ateou fogos celestes à Sodoma e Gomorra também pela pretensa prática do "homossexualismo” (Gênesis 18, 4-5). Isso para não falar de Levítico, onde se determina: “não dormirás com o homem como se dorme com uma mulher: é uma abominação” (Levítico 18, 22).

Essas questões aparentemente evidentes e que, em tese, demonstrariam, à saciedade, a ira divina contra os homossexuais não são tão pacíficas, quanto a literalidade das letras nos deixa aparentar. Primeiro, há quem argumente que a finalidade de Deus, no projeto original, de criar a mulher para o homem, teve como objetivo-maior o povoamento do planeta (a procriação). Aliás, esta preocupação do judaísmo primitivo está presente em todo o texto do Antigo Testamento. Isso, per si, não significaria a exclusão, como condição contrária ao mandado divino, da sexualidade entre iguais, até porque a biologia tem registrado tendências homossexuais também entre animais irracionais – criaturas de Deus, destituídas de espiritualidade e vontade pensante.

Com efeito, a fim de avaliar o comportamento homossexual no reino animal, o Museu de História Natural de Oslo, na Noruega, apresentou, em 2006, a primeira exposição dedicada ao estudo da homossexualidade não-humana, a qual foi chamada de "Against Nature", exibindo cerca de 500 espécies nas que existem estudos de comportamento homossexual de um universo de 1.500 relatos, desde mamíferos e insetos até crustáceos. Nos pássaros australianos Galahs (Roseate Cockatoo), cerca de 44% dos pares são formados por espécies do mesmo sexo, igual percentual se repete com os bonobos, raça de macacos. Além desses, há relatos bem mais antigos, como os de Aristóteles, que aponta a hienas lésbicas.

Ora, uma vez comprovada a tese, pela Ciência, de que não há contravenção natural na sexualidade diversa dos animais, calha citar a própria Bíblia, onde está escrito que “Deus fez os animais selvagens segundo a sua espécie, os animais domésticos igualmente, e da mesma forma todos os animais, que se arrastam sobre a terra. E Deus viu que isso era bom.”(grifo nosso, cfr. Gênesis 1,25). Durante toda a criação, o Criador qualifica a sua atividade criadora de “boa” e, se a homossexualidade for intrínseca à estrutura biológica das criaturas racionais e irracionais, não haveria como penalizar tal comportamento, isto porque biblicamente não há o “ruim” no processo divino de criação.

Ademais, no caso de Sodoma e Gomorra, há teólogos que defendem a tese de que a punição sobre aquelas populações (de acordo com Ezequiel 16, 49) decorreu exclusivamente da falta de hospitalidade para com o próximo.

Quanto ao Livro de Levítico, sabe-se que este é diferente dos demais do Pentateuco pois relata quase exclusivamente o sistema das leis para governar Israel na sua vida religiosa, civil, dietética e diária. Trata-se de um emaranhado de normas, cerimônias, rituais, festas e costumes. Até Jesus pareceu não valorizar tal regramento, quando criticou as leis sobre o que é puro e impuro. A seguir o teor do referido texto, não poderíamos nos alimentar, sob pena de incidir em abominação, da carne do porco. (Levítico 11, 11)

No Novo Testamento, inicialmente, é de bom alvitre esclarecer que, no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, núcleo da dogmática cristã, não há uma só palavra, atribuída ao Messias, discriminando homossexuais e os resvalando ao inferno. Ao revés, na referência aos eunucos, o Leão de Judá deixou claro que: “porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o” (Mateus 19,12) , raciocínio segundo qual, de acordo com teólogos pouco ortodoxos, aplicar-se-ia, mutatis mutandis, aos homossexuais, nomeadamente quando parte da ciência tem-se inclinado pela genética como principal fator determinante da sexualidade humana.

Todavia, ainda no Novo Testamento, o principal algoz dos gays é o apóstolo Paulo que se confessa ser vitimado de um espinho na carne nunca revelado especificamente (II Coríntios 12,7). Dentre outros pontos, São Paulo, nas suas famosas epístolas (“Corpus Paulinum”), diz expressamente que os efeminados e sodomitas não herdarão o reino dos céus (I Co 6,9,11). Primados teleologicamente similares são expostos na Primeira Epístola a Timóteo (I Tim. 1,9-10) e na Carta aos Romanos (Rm.1,26-27).

As traduções da Bíblia são heterogêneas sobre os trechos escritos em grego antigo pelo apóstolo. Na verdade, os dois vocábulos gregos, utilizados por Paulo, para condenar a homossexualidade, são:"malakos" e "arsenokoites".

Originalmente “malakos” significa, em tradução literal, “macio”, “fino”, “mole” ou “delicado” (fonte: Greek Dictionary of The New Testament). Alguns etimologistas também o traduzem como “amanteigado”. No português, os tradutores optaram por traduzir “malakoi” como “efeminados”. Tom Horner, na obra “Jônatas amou Davi” (Jonathan Loved David), contextualiza a advertência paulina com o cenário greco-romano da época, dizendo referir-se Paulo aos “homens extremamente efeminados que transformaram a homossexualidade em uma profissão. Estes eram os efeminados – os prostitutos homossexuais da Grécia antiga, os assim chamados ‘cães sagrados’ dos santuários canaanitas, e os eunucos seguidores da deusa Cibele... Em algumas sociedades, tais como aquelas da antiga Frigia, os efeminados foram olhados com honra e respeito; mas na sociedade hebraica, em todos os períodos que conhecemos, não o eram". Assim, o que Paulo teria condenado seria a promiscuidade sexual pelo paganismo e não a homoafetividade.

Mais duvidosa ainda é a verdadeira acepção do vocábulo “ arsenokoites”. Trata-se da aglutinação de dois radicais gregos “arsen” e “koites”. O primeiro significa “macho” ou “varão”, e o segundo “cama” ou “deitar” que daí derivou a palavra “coito”. A união destes dois termos, segundo estudiosos, referir-se-ia à ideia de um homem que pratica muito sexo, um ser luxurioso ou excessivamente lascivo, ou seja um “homem de cama”. A palavra seria então melhor interpretada por “promíscuo, devasso ou luxurioso”. Nesse mesmo diapasão, a Escritura Sagrada estaria repreendendo não só os homossexuais que se comportassem de forma devassa mas também os héteros, não anatemizando a espécie de relação sexual, mas sim o excesso desvairado e desamoroso do sexo. Isso pode ser comprovado, através da tradução católica (Bíblia dos monges Maredsous) a qual utiliza os termos “infames” ou “devassos”.

Ademais, a Bíblia está repleta de regras históricas, atinentes aos costumes da época. Assim, veja o que o mesmo apóstolo Paulo nos fala sobre as mulheres: “que as mulheres fiquem caladas nas assembleias, como se faz em todas as igrejas dos cristãos, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar submissas, como diz também a lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto, perguntem aos maridos em casa; não é conveniente que a mulher fale nas assembleias.” (I Coríntios 14, 34-35).

Calha uma pergunta sobre o tema: estariam então todas as pastoras e bispas evangélicas condenadas ao inferno por descumprimento de uma ordenança divina? E o que falar das mulheres que lideram os cultos da renovação carismática católica? Porque tal regra é ignorada por muitos, ao passo que outras são tidas como dogmas sagrados? Será que Aline Barros ou Ana Paula Valadão que pregam e cantam Deus para multidões não estão salvas? Quem tem poder de decidir o que é lei divina ou costume da época?

Todos nós, cristãos, mesmo crendo num Deus Único que enviou Seu Filho unigênito para redimir os pecados da humanidade, temos que assumir a maturidade espiritual de reconhecer que, nada obstante esteja na Bíblia a Palavra Inerrante de Jeová, sua interpretação, pelos homens, é complexa, dúbia e deixa margem a uma série de questionamentos que somente serão nulificados com a vinda de Jesus. Até lá, cabe-nos o papel de imitadores de Cristo, lembrando que, segundo inúmeros trechos bíblicos, Deus não faz acepção de pessoas (At 10, 34-35/ Rm 2,10-11/ Ef 6,5-9/ Tg 2,1-9 ).



Eduardo Varanda Araruna

 

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