RAUL HAIDAR
Advogado tributarista, ex-fiscal de tributos no Estado de São Paulo, autor de vários livros e centenas de artigos sobre direito tributário, jornalista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e membro do Conselho Editorial do Conjur
Para os proprietários de veículos deste país não existe Justiça tributária. Criou-se uma lenda, já bastante antiga, segundo a qual quem tem carro é rico. Ou pelo menos “burguês”, para usarmos o vocabulário típico de alguns dinossauros falantes que insistem em permanecer no século XIX. Rico ou burguês tem que ser tributado ou “expropriado” para supostamente repartir sua riqueza com o proletariado. Mas normalmente quem faz tal pregação usa carro oficial. É o cinismo fiscalista em ação.
Se os arrogantes dirigentes das montadoras sempre nos viram como seres inferiores capazes de comprar carroças a preço de automóveis, governantes e legisladores nos tratam como idiotas capazes de pagar qualquer tipo de tributo.
Liberadas as importações em 1990, as montadoras tiveram que melhorar um pouquinho os veículos para enfrentar a concorrência dos importados, melhores que as carroças e a preços mais competitivos. Para proteger montadoras e manter empregos, aumentou-se o imposto de importação até o limite máximo admitido pelos tratados comerciais, ampliando-se ainda os demais tributos.
Temos hoje uma das maiores cargas tributárias do mundo, já próxima de 40% do PIB, em troca de péssimos serviços. Pagamos impostos para receber Justiça, Segurança, Saúde, Educação, etc. e pouco recebemos...
O preço dos automóveis embute cerca de 50% de tributos entre IPI , ICMS, IPVA, Cofins, PIS, Contribuição Social, licenciamento, IOF no financiamento e nos seguros, etc.
Essa carga varia conforme o modelo do carro (popular, luxo, etc) e o uso (táxis gozam de isenções), mas na média passa dos 40%. Eis aí a explicação para a enorme diferença de preço que se verifica em comparações com outros países. O mesmo BMW feito na Alemanha pode custar 25 mil dólares em Miami e mais que o dobro em São Paulo.
Mas quem compra automóvel paga tributos para usá-lo também. Além de pagar IPVA todo ano, tributam-se o consumo de combustíveis, as despesas com manutenção, as peças, etc. Automóvel é quase uma outra família e representa fonte inesgotável de tributos para o país.
Quem estuda tributação sabe que impostos só podem incidir sobre renda, patrimônio ou consumo. Os veículos são tributados pelo ICMS e pelo IPI porque são bens de consumo, classificados como mercadorias (pelo ICMS) e produtos industrializados (pelo IPI).
Sendo tributados como bens de consumo (ainda que duráveis) não podem sofrer tributação do IPVA como se fossem patrimônio, pois o objeto de tributação ou é bem de consumo ou não.
Se fosse válido cobrar imposto sobre o consumo daquilo que já se tributa pelo imposto sobre patrimônio, haveria incidência de ICMS e IPI na venda de imóvel, que é tributado pelo IPTU. Imóveis não são considerados mercadorias ou produtos industrializados para efeito de tributação...
De igual forma, automóveis não podem ser considerados bens integrantes do patrimônio para fins tributários, sob pena de admitirmos a hipótese de cobrar imposto patrimonial sobre qualquer bem de consumo durável, como geladeiras, televisores, etc.
O conceito clássico de patrimônio (Rodrigo Fontinha, Dic.Etimologico...) refere-se a “...bens herdados ou dados por pais ou avós; bens de família...” e nos leva à conclusão de que tendo a palavra origem em “pater” (pai), representa o conjunto de bens e riquezas que se pode acumular para a proteção da família e dos descendentes. Daí a preocupação de pais sobre o “patrimônio” que podem transferir a seus filhos.
Esse conceito de patrimônio é que merece tratamento especial do legislador, a ponto de se preservar o “bem de família”, protegendo-o até de credores, em cumprimento ao disposto nos artigos 226 e seguintes da Constituição. Mas não há dúvida de que automóveis são bens de consumo e assim devem ser tratados para todos os efeitos, especialmente os tributários.
Todo o nosso sistema tributário foi transformado numa bagunça generalizada, a merecer ampla reforma, que nenhum governo quer fazer. Basta dizer que em 1965 tínhamos uma carga tributária de cerca de 20% do PIB, que cresce continuamente (com pequenas quedas na década de 90) atingindo hoje cerca de 38%. Assinale-se que uma enorme quantidade de taxas (que são tributos) sempre ficam escamoteadas das pouco confiáveis estatísticas oficiais.
Se não existe razão para cobrar IPVA dos automóveis porque são bens de consumo, esse imposto deve ser extinto.
Metade do IPVA pertence ao Estado e a outra metade aos municípios e sua extinção trará queda de arrecadação, que pode ser compensada com o ICMS, de cuja receita 25% pertencem aos municípios. Estes ainda possuem ampla capacidade de recomposição de receita, bastando que administrem corretamente a tributação do IPTU.
A sonegação do ICMS em veículos é praticamente impossível, pois adota-se a substituição tributária: o imposto é pago pelas montadoras ou importadoras e os mecanismos de controle são absolutamente precisos. O principal deles é o Renavam, pois não há licenciamento de veículo sem esse cadastro.
A extinção do IPVA representaria um bom estímulo às vendas, especialmente dos veículos usados, cujo mercado está em baixa. Aliviaria o bolso da classe média, reduziria e burocracia e permitiria que as pessoas de menor poder aquisitivo tivessem acesso a carros melhores. Além disso, livraria o cidadão de um desembolso injusto de imposto logo no começo do ano, quando já tem seu orçamento comprometido com inúmeros gastos.
Aquela ideia dos tempos dos dinossauros de que quem tem carro é rico é uma rematada besteira. Automóveis são hoje principalmente instrumento de trabalho, especialmente ante a deficiência do transporte público. Alguns profissionais (corretores, por exemplo) já pedem isenção do imposto. Se queremos justiça tributária, devemos acabar com o IPVA.
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