ARTIGOS DO PROF. LFG - Princípio da insignificância: STF concede quase 1/3 dos HCs. Juízes ainda condenam por um pote de manteiga
LUIZ FLÁVIO GOMES
Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Encontre-me no Facebook.
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância: STF concede quase 1/3 dos HCs. Juízes ainda condenam por um pote de manteiga… Disponível em http://www.lfg.com.br - 11 de março de 2011.
Notícia divulgada pelo STF no dia 07.03.2011 diz o seguinte: dos 340 Habeas Corpus autuados no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 2008 e 2010 pleiteando a aplicação do princípio da insignificância (ou bagatela), 91 foram concedidos, número que equivale a 26,76% do total. Quase um terço do total.
Em 2008, chegaram ao STF 99 processos do tipo, sendo que 31 foram acolhidos. Em 2009, dos 118 habeas corpus impetrados na Corte sobre o tema, 45 foram concedidos. Já em 2010, o STF recebeu 123 HCs sobre princípio da insignificância, acolhendo somente 15 desses pedidos.
Em 2008 foram indeferidos ou arquivados 14 Habeas Corpus pedindo a aplicação do princípio. Em 2009, 26 processos do tipo foram negados ou arquivados. Em 2010, esse total subiu para 76.
Nossos comentários:
Ainda é preciso chegar ao STF (nossa quarta instância, em termos de HC), muitas vezes, para ver aplicado o princípio da insignificância (que tratamos em livro específico, RT). Isso significa que o réu deve passar por três instâncias anteriores: primeira, segunda e STJ. Ufa! Que dificuldade!
O que a estatística do STF revela? Revela o seguinte: é incrível o teor de violência que ainda está presente na caneta dos juízes brasileiros. Há exceções, claro! Que só comprovam a regra geral (de autoritarismo e violência contra os marginalizados étnica, social e economicamente).
Prossegue a notícia do STF: Princípio da insignificância é aplicado a furto de objetos de pouco valor
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) incluiu na primeira sessão de 2011 a análise de quatro Habeas Corpus pedindo a aplicação do princípio da insignificância (ou bagatela). Três deles foram concedidos, resultando na extinção de ações penais.
Processos envolvendo o princípio da insignificância têm-se tornado cada vez mais corriqueiros no STF. Uma dessas ações julgada pela Turma apurava a tentativa de furto de dez brocas, dois cadeados, duas cuecas, três sungas e seis bermudas de um hipermercado em Natal, no Rio Grande do Norte.
Ao conceder o pedido de Habeas Corpus para anular a ação penal, o relator do processo, ministro Gilmar Mendes, ressaltou que o princípio da insignificância se firmou “como importante instrumento de aprimoramento do Direito Penal, sendo paulatinamente reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores, em especial pelo Supremo Tribunal Federal”, após passar por um “longo processo de formação, marcado por decisões casuais e excepcionais”.
Segundo ele, “não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a um furto de pequena monta”.
A outra ação penal trancada por decisão da 2ª Turma do Supremo tratava do furto de uma bicicleta no valor de R$ 120,00, que acabou sendo devolvida ao proprietário. O caso, que ocorreu no Rio Grande do Sul, foi debatido em um Habeas Corpus que também era de relatoria do ministro Gilmar Mendes.
Em seu voto, ele afirma que “a despeito de restar patente a existência da tipicidade formal (perfeita adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal) — não incide no caso a tipicidade material, que se traduz na lesividade efetiva e concreta ao bem jurídico tutelado, sendo atípica a conduta imputada ao (réu)”.
Nossos comentários:
No nosso livro sobre o tema (RT) procuramos realçar bem a diferença entre tipicidade formal e tipicidade material. A tipicidade formal exige a realização literal (gramatical) do fato típico descrito na lei. Todo fato insignificante é, desde logo, formalmente típico. Do contrário, nem sequer se coloca a questão da insignificância, que tem tudo a ver com o grau de ofensa ao bem jurídico. Quando essa ofensa é ínfima, nímia, não se justifica a intervenção do direito penal. Essas lesões ínfimas não fazem parte do âmbito do proibido. Nem tudo que formalmente é típico resulta materialmente típico. Na avaliação do que é materialmente típico (penalmente relevante) entra uma boa dose de sensibilidade e razoabilidade do juiz. A dificuldade de aplicação do princípio da insignificância reside justamente nisso: ele não está previsto expressamente na lei. Tudo depende de uma valoração do juiz. Assim como as regras de imputação objetiva de Roxin. Muitos juízes não possuem a mínima ideia do que é isso. E tudo que ignoramos tendemos a rejeitar. Tudo fica mais simplificado. Banir nossa ignorância, em tudo da nossa vida, significa estudar, aprender, saber. Isso custa tempo e esforço. A lei do menor esforço nos leva sempre a preferir o comodismo, o imobilismo.
Novamente, o ministro Gilmar Mendes ressalta que, “quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade”, não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz sejam provocados.
O terceiro caso de aplicação do princípio da insignificância pela 2ª Turma do Supremo anulou uma ação penal aberta para investigar o não recolhimento de tributos em importação de mercadorias no valor de R$ 1.645,28. O debate ocorreu na análise de Habeas Corpus de relatoria do ministro Joaquim Barbosa, que aplicou precedentes da Corte sobre a matéria.
Não se pode esquecer que a jurisprudência do STF se firmou no sentido de que nos crimes tributários e previdenciários o valor da insignificância hoje reside no patamar de R$ 10.000,00.
Conceito
O princípio da insignificância é um preceito que reúne quatro condições essenciais para ser aplicado: a mínima ofensividade da conduta, a inexistência de periculosidade social do ato, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão provocada.
Em resumo, o conceito do princípio da insignificância é o de que a conduta praticada pelo agente atinge de forma tão ínfima o valor tutelado pela norma que não se justifica a repressão. Juridicamente, isso significa que não houve crime algum.
Do ponto de vista formal, sim, houve uma conduta típica. O que se afasta na insignificância é a tipicidade material.
Em maio de 2009, isso foi ressaltado em julgamento realizado pela Segunda Turma do Supremo. Os ministros aplicaram o princípio da insignificância a uma tentativa de furto de cinco barras de chocolate em um supermercado.
Nesse caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) limitou-se a extinguir a punibilidade do acusado. Mas a Turma, seguindo voto do relator do processo, ministro Celso de Mello, reformou a decisão para absolver o réu e extinguir a ação penal porque, segundo ele, a conduta sequer poderia ser considerada crime.
É que a extinção da punibilidade por si só não exclui os efeitos processuais. Ou seja, a tentativa de furto ficaria registrada e poderia pesar contra o acusado no futuro, na qualidade de maus antecedentes. Ao ser absolvido, o acusado é considerado primário caso se torne réu em outra ação.
Caso a caso
A jurisprudência do Supremo determina que a aplicação do princípio da insignificância deve ser criteriosa e feita caso a caso. A Primeira Turma, por exemplo, já reconheceu que o preceito pode ser aplicado a atos infracionais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A reincidência, entretanto, inviabiliza a aplicação do princípio. Em outubro de 2009, a Primeira Turma negou pedido de Habeas Corpus em favor de um adolescente acusado de roubar uma ovelha em Santiago, no Rio Grande do Sul. A decisão foi tomada com base em informações do Tribunal de Justiça gaúcho segundo as quais o jovem já havia se envolvido em outros atos infracionais tendo, inclusive, sofrido medidas socioeducativas.
Os ministros também levaram em consideração o caráter educativo da reprimenda, que determinou a inclusão do adolescente em um programa de combate à dependência química. Segundo dados do processo, a mãe do jovem declarou a autoridades locais que seu filho estava se envolvendo com criminosos e vendendo objetos de sua casa para comprar drogas.
A Primeira Turma do STF também analisou pedidos de aplicação do princípio da insignificância logo nas primeiras sessões deste ano. Um dos Habeas Corpus beneficiaria dois condenados pelo furto de bicicleta avaliada em cerca de R$ 100,00.
O pedido não foi concedido porque a vítima do crime era pobre, o que, para os ministros, torna o valor do bem significativo. Com isso, continua valendo a pena de dois anos reclusão e pagamento de multa imposta aos acusados, que foi substituída por outra restritiva de direitos.
Também não é considerado insignificante pelo Supremo a posse, por militar, de pequena quantidade de entorpecente em estabelecimento castrense. No dia 21 de outubro de 2010, por 6 votos a 4, a Corte firmou o precedente de que o princípio da insignificância não pode ser utilizado para beneficiar militares flagrados com reduzida quantidade de droga em ambiente militar. “O uso de drogas e o dever militar são como água e óleo, não se misturam”, sintetizou o ministro Ayres Britto, relator do Habeas Corpus analisado na ocasião.
Discordamos desse entendimento. Tudo depende do caso concreto. Os valores militares (hierarquia, obediência etc.) não são suficientes para justificar, de plano, a incidência do princípio da insignificância. Há acórdãos do Min. Celso de Mello nesse sentido.
O caso era de um militar surpreendido com pequena quantidade de maconha durante expediente no Hospital Geral de Brasília (HGB), estabelecimento castrense. Pela conduta, o militar foi enquadrado no artigo 290 do Código Penal Militar e condenado a um ano de reclusão.
Em abril de 2009, a Segunda Turma do STF negou a aplicação do princípio da insignificância a dois casos que envolviam condenação por furto e roubo de quantidade ínfima de dinheiro. Um por causa da relevância, para a vítima, da lesão jurídica provocada. A circunstância era de furto de toda renda obtida em um dia de trabalho pela dona de um trailer de lanche no Rio de Janeiro. O outro caso envolveu roubo com uso de arma de fogo e violência.
Novos casos
Logo no início deste ano chegaram ao STF novos Habeas Corpus pedindo a aplicação do princípio da insignificância. Entre os pedidos, há um em favor de acusado de roubar uma bicicleta no valor de R$ 150,00 na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O roubo ocorreu em 2009.
A bicicleta chegou a ser devolvida ao dono e o acusado foi absolvido em primeira instância e pelo Tribunal de Justiça do estado. Mas a ação penal voltou a tramitar por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que acolheu recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Agora a defesa recorre ao Supremo.
Outro habeas corpus pede a absolvição de pessoa condenada por colocar em circulação duas cédulas falsas de R$ 50,00. A condenação foi determinada pela 2ª Vara Federal do Rio Grande do Norte e confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, com sede em Recife (PE).
Um terceiro pedido foi feito em defesa de acusado pela tentativa de furto de esquadrias de alumínio de um prédio desativado do Tribunal Regional do Trabalho em Itabuna, na Bahia. A defesa pede o trancamento da ação penal sob o argumento de que o acusado obteria um valor ínfimo com a venda das esquadrias, abaixo de R$ 50,00.
É fundamental, para a consolidação definitiva do princípio da insignificância, a atuação dos advogados e defensores. Claro que, em tese, também o Ministério Público pode fazer a postulação (em habeas corpus em favor do réu). Mas isso é raro. Deixando a raridade de lado, vamos para a regra geral: são os advogados e defensores públicos os grandes responsáveis pela mudança e/ou consolidação da jurisprudência. No âmbito penal, gostaria de sinalizar duas áreas em que isso ainda deve acontecer com bastante intensidade: imputação objetiva de Roxin e direito internacional. São duas áreas praticamente virgens em termos de jurisprudência. E por que a jurisprudência é parcimoniosa aqui: porque os advogados estão invocando pouco (ou nada) essas teses nos seus arrazoados. A atualização permanente dos advogados é a grande responsável pelas mudanças do direto. Cuida-se de um papel não só jurídico, como, sobretudo, social. O direito não pode ficar imobilizado. Quando a ciência evolui (esse é o caso da teoria da imputação objetiva) ou quando a jurisprudência internacional avança (veja no nosso blog as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos), os primeiros a invocar tudo isso nas petições devem ser os advogados e defensores.
Este artigo foi originalmente no Blog do LFG
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